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A exposição SONHAR COM AS MÃOS. O DESENHO NA OBRA DE MÁRIO DIONÍSIO* apresenta, pela primeira vez, um corpo de trabalho que o artista manteve praticamente arredado do olhar público, mas que é indissociável quer da sua teorização do Neo-Realismo – movimento que integrou «desde a hora antes do amanhecer»1 – quer das pesquisas que simultaneamente foi desenvolvendo em pintura e que o conduziram ao abstracionismo.
Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde iniciou actividade militante antifascista, Mário Dionísio (1916-1993) foi poeta, contista, romancista, crítico, ensaísta e professor de Literatura, prefaciou álbuns e catálogos de exposições, publicou entrevistas com pintores, fez conferências sobre arte e presidiu à comissão da reforma educativa que em 1974-75 introduziu as cadeiras de Educação Visual e Música nas escolas públicas.
As artes plásticas entraram na sua vida no início da década de 40, em consequência de uma tuberculose pulmonar que lhe interrompeu a carreira de professor e o forçou a isolar-se em casa. As primeiras experiências artísticas, incitadas pelos seus amigos Álvaro Cunhal, José Huertas Lobo e António Augusto Oliveira, rapidamente o conduziram ao estudo dos materiais e da História da Arte, e a uma perspectivação dos problemas da pintura relacionada com as questões políticas que então se colocavam à poesia e à ficção.
Principal teorizador da estética neo-realista, Mário Dionísio defendeu no seio desse movimento que nos anos 40 e 50 congregou a oposição artística ao Estado Novo três princípios estruturantes: superação formal sem obliteração do passado, relação das formas com os valores humanistas do materialismo histórico e exteriorização da realidade colectiva sem prejuízo da individualidade do artista. Traduzindo coerentemente na sua produção poliédrica uma visão utópica a que procurou dar materialidade com as próprias mãos, afastar-se-ia em 1952 do PCP e, no ano seguinte, da organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas.
Autodidacta, das leituras de André Lhote reteve um «conselho» que influenciou toda a sua produção artística: «desenhar é preparar de antemão o lugar para cor»2 . Desta concepção do desenho como meio para alcançar a pintura nunca se terá totalmente libertado. O facto de ter destruído muito do que fez obriga-nos a formular uma leitura com base no acervo poupado pelo seu crivo, com as inerentes lacunas que aí se detectam, designadamente de âmbito cronológico3.
Terão sido apenas quatro as ocasiões em que exibiu desenhos: duas vezes em 1949 – ano em que a obra Rapariga do Cais conquistou a 3ª Medalha de Desenho no Salão de Inverno da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) e que apresentou Maria e Maternidade na IV Exposição Geral de Artes Plásticas (EGAP) –, uma vez em 1950 (Rapariga do Cais, na V EGAP) e outra em 1983 (Cabeça, patente na exposição «O Neo-Realismo e as suas Margens»).
Não obstante, enquanto testemunhos de um processo artístico permanentemente em reelaboração e sendo reveladores do modo como plasticamente se articulavam convicções ideológicas e pensamento estético, os desenhos de Mário Dionísio – das obras que expôs aos esboços, estudos ou apontamentos rápidos – permitem não só compreender melhor o seu percurso até à abstracção como aproximar na sua obra o exercício das artes visuais e da escrita.
Em SONHAR COM AS MÃOS procura-se sublinhar essa relação, quer através da exibição de diários inéditos e alguns registos documentais quer num pequeno núcleo que introduz a exposição – onde a par de retratos do artista desenhados por amigos (Júlio Pomar, Tereza Arriaga e João Abel Manta) se apresenta um conjunto de auto-retratos datados de 1943-44, dois dos quais assinados com pseudónimos, e um poema de Memória dum Pintor Desconhecido, livro de 1965 que Mário Dionísio relacionou com toda a sua produção plástica anterior e posterior4.
As mãos que constroem sonhos
A problemática da mediação estética na representação do real é central na produção teórica, plástica e gráfica de Mário Dionísio, tendo mesmo fundamentado a sua posição crítica no início dos anos 50 durante a chamada polémica interna do neo-realismo. Não dissociando forma e conteúdo, considerava que não havia artistas revolucionários ou conservadores mas somente artistas cujas obras exprimiam as convicções dos seus autores (assim derivando da linha ortodoxa do movimento, mais próxima da doutrina jdanovista soviética).
Neste núcleo se apresentam as primeiras obras a carvão, datadas de 1941, entre as quais de destacam um Auto-Retrato, um retrato de Maria Letícia (sua mulher) e representações de homens e mulheres anónimos. O interesse pela figura humana, aqui ainda tacteada através da mancha densa e do contorno de risco intenso em poses algo academizantes, manter-se-á ao longo do processo de aperfeiçoamento do gesto. Como escreveria mais tarde, «só os sonhos não erguem monumentos. São precisas as mãos. Mas mãos que sintam e pensem, mãos humanas»5.
A procura do traço
Foi sobretudo nas reproduções de livros de arte que Mário Dionísio encontrou os modelos estéticos a partir dos quais foi apurando a percepção das formas e se lançou na sua tradução do real. Van Gogh, Goya, Cézanne, Matisse e Picasso foram as primeiras influências, tal como os muralistas mexicanos e o brasileiro Portinari. Os desenhos feitos em blocos de papel, datados de 1943-44, permitem acompanhar a aprendizagem da mão em busca de traço próprio e a progressão ao nível da expressividade e do apuramento de formas. Em estudos de paisagem, ainda num registo pormenorizador, ou nos apontamentos de figuras em situações de trabalho, o artista vai afinando a linha e explorando quer as potencialidades do enquadramento quer a redução dos contornos a curvas e ângulos essenciais.
A progressiva geometrização das figuras é patente num conjunto de desenhos de serradores ou em cenas de cais captadas durante as sessões de desenho que realizou na Ribeira de Lisboa, com Alves Redol e Júlio Pomar. O povo, tema recorrente nas representações neo-realistas, foi bastante documentado. Mas «não havia só camponeses e operários»6. Embora consideravelmente em menor número, Mário Dionísio desenhou também retratos e cenas do quotidiano burguês que nos remetem para novas experimentações e outras influências de estilo – caso de Leitaria (que testa as potencialidades da perspectiva e onde representou mulheres de cabelos legerianos e feições sintetizadas) ou de Comboio do Estoril (esboço rápido que sugere afinidades com o expressionismo caricatural alemão praticado por Grosz nos anos 20).
O imperativo da acção
De 1945 é a série de desenhos a tinta-da-china mais assumidamente política. Mário Dionísio desenhou então uma multidão na rua a celebrar o fim da II Guerra Mundial na Europa, em traços rápidos e emotivos que testemunham o momento em que acreditou também ser possível o fim da ditadura em Portugal. Recorrendo à técnica do gribouillage – registo da própria geração do desenho7, aqui conseguido através de pequenos gestos elípticos que fazem desenrolar a linha em maior ou menor densidade consoante as marcações de sombras e volumes –, o artista representou criticamente o Portugal do Estado Novo: a cozinha camponesa sem alimentos, o ambiente conspirativo, operários enfileirados, ceifeiros sob as ordens do capataz no latifúndio ou uma maternidade que representará a pátria, de cabeça deslocada e mão engrandecida, de cujo manto nascem figuras que simbolizam o poder, a religião e a exploração do trabalho.
Esta série condensa o que Mário Dionísio preconizava para o Neo-Realismo, tanto pela leitura ideológica que lhe subjaz como pela variedade de recursos estilísticos que nela se conjugam (aqui se encontram sugestões do traço curvilíneo de Portinari, do grotesco de Goya, das distorções expressionistas, mas também o risco automático e elementos arqui-tectónicos que sugerem a pintura metafísica e pré-surrealizante de De Chirico). Trata-se de um conjunto igualmente marcante por nele se configurar um momento de viragem na sua obra gráfica.
A libertação da linha
Recorrendo ainda à técnica do gribouillage, Mário Dionísio fez um emblemático Auto-Retrato frontal e alguns retratos de crianças em pose, sendo estes já ilustrativos de uma procura da representação do rosto através da limpa delineação. Paralelamente a esta demanda do contorno ideal, ensaiou em desenhos coloridos a aguarela a definição de sombras e volumes. Em 1946, num desenho da sua mulher sentada, as linhas de força reduzem já a figura ao essencial e deste processo resultaria também Maria [Letícia], de 1948, exibido no ano seguinte na secção de desenho da IV Exposição Geral de Artes Plásticas. De idênticas referências picassianas, e evidenciando maior controlo da mão nas linhas orgânicas, destacam-se outros desenhos de figuras femininas. Bem como Rapariga do Cais - actualmente na colecção do Museu do Neo-Realismo – obra premiada em 1949 com a 3ª Medalha de Desenho no Salão de Inverno da SNBA.
Desta época datam também o decalque em papel vegetal e a maquete colorida de um mural para o Café La Gare (actual Cervejaria Beira Gare, frente à estação do Rossio), encomendado pelos arquitectos Francisco Castro Rodrigues, José Huertas Lobo e João Simões, autores do projecto do café. O mural não chegou a ser pintado porque a obra foi entregue a outros arquitectos.
A concentração exigida pela escrita de A Paleta e o Mundo, ensaio a que se dedicou entre 1952 e 1962, levou o artista a refrear a prática da pintura. Porém, fosse para conter a vontade de pintar ou por necessidade de «ver claro» no desenho o que ia problematizando ao nível da teorização estética, Mário Dionísio continuou a desenhar. Desse período data o retrato a carvão de Eduarda Dionísio, sua filha, em geometrizações cubistas que têm paralelo num esboço de uma pomba. Tal como a representação a lápis de cera de mulheres na praia ou dois estudos de dimensões reduzidas que indiciam a transição do figurativo para o abstracto.
O labirinto do espaço
Em 1957, Mário Dionísio proferiu a célebre conferência Conflito e Unidade da Arte Contem-porânea, procurando demonstrar a possibilidade de síntese entre figuração e abstracção. Consciente da via aberta pelo cubismo analítico de Braque e Picasso logo em inícios do século xx, e então já influenciado pela obra de Bissière e Vieira da Silva, não só desen-volveria esta ideia em A Paleta e o Mundo como tentou concretizar, em pintura, o que na sua obra gráfica ia despertando. Exemplos disso são os desenhos de cenas de cais cujas figuras geometrizadas surgem atravessadas por malhas e rasuras que as decompõem. E que terão continuidade numa série de pequenos desenhos feitos sobre papel quadriculado, ensaios para as telas abstractas que iria pintar nos anos 70 e 80.
Toda a produção gráfica deste artista revela quer o gosto pela experimentação – que o levou a testar simultaneamente expressões e técnicas diversas –, quer a permanente indagação dos seus próprios limites no plano do desenho. Razão pela qual se apresentam neste núcleo os estudos para a capa de um livro de psiquiatria publicado em 19448, de traço inspirado pelas vanguardas russas, que não só traduzem a procurada relação entre a mão e o sonho como constituem, porventura, a melhor síntese na sua obra gráfica daquilo que Mário Dionísio pensava sobre o marxismo, a indissociabilidade da forma e do conteúdo, e a arte enquanto modo de comunicação simultaneamente transformante e transformador.
Paula Ribeiro Lobo
(a partir do texto «A necessidade de ver claro», incluído no catálogo da exposição)
2 Diário inédito, 27/2/1974. No arquivo da Casa da Achada-CMD. voltar ao texto
3 Referimo-nos ao espólio artístico de Mário Dionísio conservado na Casa da Achada-CMD, em Lisboa. voltar ao texto
4 Introdução de Mário Dionísio (cat.), Galeria Nasoni, 1989. voltar ao texto
5 Mário Dionísio, «O Sonho e as Mãos II», Vértice, vol. xiv, n.º125, Fevereiro 1954, pp. 93-101. voltar ao texto
6 Mário Dionísio, Autobiografia, Lisboa: O Jornal, 1987, p.43. voltar ao texto
7 Segundo Hubert Damisch, Traité du Trait (cat.), Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1995, p.155. voltar ao texto
8 Análise de Alguns Casos Psicopatológicos: A irredutibilidade de Tyndall e o pensamento fenómeno bio-social, do médico Emílio Aparício Pereira, Lisboa, 1944. voltar ao texto
*A exposição SONHAR COM AS MÃOS contou com o apoio da Fundação Montepio. As vitrinas foram cedidas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Três das obras expostas foram cedidas por Tereza Arriaga, pelo Museu do Neo-Realismo e pelo Museu da Cidade. voltar ao texto
André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2022