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A obra de Mário Dionísio, pintor e escritor, está toda ela articulada por um princípio interior de coerência, de carácter estético-ideológico, que importaria estudar de modo atento e desenvolvido para uma melhor compreensão da cultura portuguesa das três décadas anteriores à revolução de Abril e, sobretudo, para que pudesse emergir em toda a sua complexidade o pensamento e orgânica composicional que a caracterizam. De facto, é possível postular que a sua obra pictórica desenvolve preceitos de intencionalidade que não se afastam muito dos da obra literária e, nesta, a relação com o ensaísmo é em muitos casos evidente, sobretudo se considerarmos o seu romance Não há Morte nem Princípio, onde a componente reflexiva faz directamente parte da urdidura ficcional do texto, ou, na proporção inversa, se pensarmos no seu ensaio a muitos títulos determinante, A Paleta e o Mundo, que tem um alcance que em muito ultrapassa o domínio das artes plásticas para ser uma longa, informada, completa e original meditação sobre as condições e a natureza da criação artística de uma maneira geral. Penso mesmo que se trata de um texto essencial no que respeita à consideração da problemática da evolução do modernismo para a contemporaneidade na cultura portuguesa, e que certos aspectos que parecem hoje estranhos na maneira nacional de lidar com a sensibilidade pós-moderna estão, de certo modo, contidos em reflexões e em perplexidades aí equacionadas pelo autor.
Porque a questão do contemporâneo ocupou sempre o trabalho de Mário Dionísio, o que é o mesmo que dizer que há uma consciência histórica definida e aguda na generalidade dos seus trabalhos, e nomeadamente, dos seus escritos. Isso verifica-se na maneira como está organizada A Paleta e o Mundo (obra que pode ser lida como história da pintura ocidental) e, sobretudo, no modo como os seus textos literários entram em correlação com a circunstância doutrinária coeva, quer na poesia quer na ficção, desde Poemas a Terceira Idade, ou desde O Dia Cinzento a Monólogo a Duas Vozes. A temática neo-realista marca de modo determinante os seus primeiros poemas nunca caindo no simplismo de que os seguidores desta concepção artística foram posteriormente acusados, e que acontecia, se bem verificarmos, nos casos menos talentosos ou nas obras menos conseguidas, antes adquirindo aqui matizes temáticos e prosódicos que souberam resistir ao tempo:
Ah nada pior que a casa deserta
sozinha, sozinha.
O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe. Para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...
em As Solicitações e Emboscadas, ou em Memória de um Pintor Desconhecido (sem esquecer o magnífico conjunto Le feu qui dort), a complexidade alcançada não é a de uma evolução mas a do amadurecimento de um talento, que o conjunto Terceira Idade diferencia em função de uma circunstância bem diferente, e de um modo pessoal que se apura, ou simplesmente se altera e transforma, confrontando uma visão do mundo peculiar com imposições exteriores que se reconhece não serem afinal alheias ao modo pessoal de sensibilidade que as considera:
Quando a terra se acaba
e nenhum mar começa
e só Febo repousa no oceano
os muros do esquecimento estão trepando
Rasga-se o pano
de outrora pandas velas que o tempo foi
gastando
e na nossa memória que tropeça
rangem traves da asna que desaba
Tudo tão lenta e despercebidamente
que o mesmo que sentimos ignoramos
se testemunha ou mente
Isso mesmo se verifica nos seus contos, que ficarão, desde O Dia Cinzento, de 1944, a marcar uma data na efabulação desse género tão difícil de caracterizar e de construir; versando sobretudo a matéria citadina, Mário Dionísio organiza os seus textos dos volumes de contos em torno de uma personagem central, que em geral acompanha com focalização interna em terceira pessoa narrativa, e que são por vezes as personagens de sensibilidade erradamente conduzida, segundo a mundividência do narrador, que procura compreendê-las, ver o mundo com os seus olhos e os seus preconceitos alienantes, detectar os movimentos exteriores de oscilações e dúvidas, de inquietações e de comodismos, de que encontramos um modelar exemplo no brevíssimo conto A lata de conserva, intenso na sua significação e no seu simbolismo; outras vezes, simples atitudes do quotidiano, de incidência social mitigada, que dizem apenas respeito a condições mínimas do bem-estar e da felicidade que as convenções gerais contrariam, como no celebrado conto Assobiando à vontade, mas as atitudes pungentes de desespero sóbrio e calado, em situações-limite da dignidade e mesmo da sobrevivência humana, dão-nos textos tensos como A Corrida ou, de modo mais desenvolvido, como em Entre cafés e pensamentos, em busca demoradamente acompanhada de uma saída para a solidão das posições de princípio assumidas, no seio das incompreensões dos outros, mesmo os mais íntimos - dão conta de uma variedade de enfoques de uma temática geral do desalento humano e da impossibilidade.
Não há Morte nem Princípio e Monólogo a Duas Vozes retomam, no fundo, esta questão, aprofundando as seduções do acomodamento confortável, ou a redução das aspirações humanas mais nobres mediante a satisfação da necessidade íntima e urgente, e regressando, no segundo, ao conto, que agora se alarga a situações mais diversificadas, desenvolvendo por vezes um modo irónico que não lhe era habitual, e, talvez por isso mesmo, relativamente mais pacificado na relação com o mundo. Mas em Não há Morte nem Princípio, o social emerge como uma estruturação de convergência do económico com o intelectual, e este romance importante, que conduz o confronto da ideia com a sua prática, na relação entre a luta pessoal e o convívio, é um texto fundamental para o pensamento da nossa estética dos anos sessenta, nos planos ideológico, artístico e narrativo.
Haverá um fio na nossa vida, um nexo? Serão tudo apenas saltos, florescências de acaso, sem relação alguma, desvios imperceptíveis duma linha ou linhas que algum tempo seguimos, a que não voltamos mais? (...) Estamos vivos, não há morte nem princípio, e, no entanto, a grande marcha recomeça, principia.
Dizer, na relação de criar, foi, parece-nos, o essencial da actividade deste escritor, que sempre lidou com imagens, as da visão do mundo e as da sua expressão, as da configuração alienante e as de uma possível abertura de horizontes bloqueados. Daí que a sua preocupação cultural fosse sempre constante, e que o seu trabalho da palavra arriscasse sentidos que a procura do rigor e da nitidez não afastavam da perplexidade e da dúvida.
E é aqui talvez que se situa, para Mário Dionísio, a complementaridade da história e da reflexão, isto é, a consciência dos níveis do tempo envolvido na experiência da condição humana e na sua reflexão, que a sua ficção exemplarmente demonstra e com extrema felicidade desenvolve.
Maria Alzira Seixo
in «Não há Morte nem Príncipio» - a propósito da vida e obra de Mário Dionísio, Biblioteca-Museu República e Resistência, 1996
André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2022