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publicado no jornal Diário de Lisboa, 2 de Fevereiro de 1990
É um fulano digamos que intratável, não porque trate mal a gente, pelo contrário, mas por nos deixar sempre hesitantes sobre por onde lhe pegar. Das várias actividades a que sempre se dedicou, qual é a principal? Como julgar as suas contradições, que acabam por se revelar confirmações?
Diz-se indiferente ao que os outros pensem dele, mas sentimo-lo infeliz quando o acham, por exemplo, intransigente ou passam pelo que fez e faz como cães por vinha vindimada. Chega a sofrer com isso, o pobre, não tanto por vaidade ferida como porque, então, talvez não tivesse valido a pena. A velha ideia fixa da utilidade, do dever. Uma seca. Contudo, só muito lá por dentro.
Meão de altura, como o outro, de cabelo mais escasso do que quem quer gostaria de ter, prognatismo muito acentuado, talvez pelo uso do cachimbo a toda a hora durante anos, é afinal um sujeito bem menos austero do que os que o conhecem mal geralmente supõem. Por baixo daquela exigência toda de rigor e de coerência (perante tudo e todos, a começar por si próprio), uma criança espreita.
Daí decerto o tal vício maior de gostar de brincar com o lume, ou seja, uma actividade permanente em desafio a si próprio e em sentidos diferentes, com a mesma paixão ou teimosia: professor (44 anos!), militante político, que continuou a ser, mesmo depois de, por discordâncias de metodologia, se ver ou julgar sozinho, ensaísta de pendor polemizante, ficcionista, poeta – antes e depois de tudo, melhor: em tudo – pintor, agora a tempo inteiro.
Tinetazinha incurável: um desejo de perfeccionismo quase doentio. Escreveu sempre cada página dezenas de vezes, pintou e repintou cada uma das suas telas até à saturação. Além das que destruiu, uma montanha. É um chato em certas coisas: come porque tem de ser e só bebe água, detesta demorar-se à mesa, gostando de conviver, lamenta-se de que haja tão pouca gente com que (lhe) valha a pena fazê-lo.
Os historiadores da cultura do futuro (que os de agora estão próximos de mais) terão algumas surpresas – veleidade dele - com uma ou outra coisa que disse ou fez antes de ninguém, muito particularmente na concepção e prática do neo-realismo (um bradar no deserto!), que ajudou a fundar e defendeu até lhe parecer possível e ainda útil fazê-lo. Agora foge quanto pode a refalar no assunto. O repisar enerva-o.
Bibliografia activa, resumidamente: entre muitos escritos, palestras, entrevistas dês carácter ensaístico, «A Paleta e o Mundo», que teve o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores no ano da publicação do último volume (1962); cinco livros de poesia, desde 1941, incluídos no volume «Poesia Incompleta» (1966), a que se tem de acrescentar «Le Feu qui Dort» (1967) e «Terceira Idade» (1982), prémio ex-aequo, da Associação Internacional dos Críticos; Literários; três livros de contos: «O Dia Cinzento» (1944), reescrito e reeditado, a partir de 1967, com o título de «O Dia Cinzento e Outros Contos», «Monólogo a Duas Vozes» (1988), um romance: «Não há Morte nem Princípio» (1969); uma pequena «Autobiografia» (1987).
Viajou pela Europa, teve duas ou três doenças graves, morrerá breve ou daqui a muitos anos. A propósito da sua primeira exposição individual de pintura aos 73 anos, terminou uma entrevista na TV desta maneira: «Aos cem anos aqui estarei de novo».
Todavia, de há tempos para cá, começou a dizer-se velho, sobrevivente, etc., porque não consegue fazer tanto quanto quer, passou a detestar deslocar-se e escabuja com a invasão da literatura pelo marketing.
Não perdoa o festim. Que com coisas sérias não se brinca e outros propósitos desactualizados. Mas a tal criança ri-se e lá o vai puxando alegremente.
No catálogo da sua exposição na Nasoni (Out./Nov. de 1989), escreveu isto: «Vou caminhando sem destino e sem repouso. Gostando sempre pouco do que pinto, precisando sempre muito de pintar. Assim foi, certamente assim será. Não ambiciono mais».
Resta saber se sim. O mais prudente é esperar.
Mário Dionísio
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