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Coimbra: Atlântida, 1945, vinheta da capa de Tereza Arriaga
O que nos fica, finda a leitura deste livro [Solicitações e Emboscadas] não é a imagem de um homem fazendo gestos para que o vejam: é a imagem de uma alma segredando aos outros qualquer coisa impossível de calar.
João Gaspar Simões (1946)
Como  os outros
  como  os outros
  sem nada mais que os outros
  sentindo  como os outros
  pensando  como os outros
  e  sofrendo e lutando
  e  morrendo
  como  os outros
Onde estais vós Alberto Henrique 
  João Maria Pedro Ana? 
  Onde anda agora a vossa voz? 
  Que ruas escutam vossos passos? 
  Ao norte? ao sul? aonde? aonde? 
  José António Branca Rui 
  E tu Joana de olhos claros 
  E tu Francisco E tu Carlota 
  E tu Joaquim?
  Que estradas colhem vosso olhar?
  Onde anda agora a  vossa vida repartida?
  A oeste? A leste? Aonde? aonde?
  Olho prà frente prà cidade
  e pràs outras cidades por trás dela
  onde se agitam outras gentes
  que nunca ouviram vosso nome
  e vejo em tudo a vossa cara
  e oiço em tudo o som amigo
  a voz de um a voz de outro
  e aquele fio de sol que se agitava
  sempre
  em todos nós
  Dançam as casas nesta  noite 
  ébrias de sombra nesta  noite 
  que se prolonga em  plena angústia
  aos solavancos do destino 
  e não consegue estrangularmos 
  Sigo e pergunto ao vento à rua 
  e a esta ânsia inviolável 
  que embebe o ar de calafrios 
  Onde estais vós? onde estais vós? 
  E por detrás de cada esquina 
  e por detrás de cada vulto 
  o vento traz-me a vossa voz 
  a rua traz-me a vossa voz 
  a voz de um a voz de outro 
  toada amiga que me banha 
  tão confiante tão serena 
  Aqui aqui em toda a parte 
  Aqui aqui E tu? aonde? 
Cada  minuto uma questão
  Mil  fronteiras que venço ou que não venço
  Mas nenhuma de mais dura e duradoura  combustão:
  ser  o que penso
Meu companheiro morreu às cinco da manhã
  Foi de noite ao fim da noite às  cinco em ponto da manhã
Ah antes fosse noite noite apenas noite 
  sem a promessa da manhã
Ah antes fosse noite noite noite apenas noite
  e não houvesse em tudo a promessa risonha da  manhã
Deitado para sempre às cinco da manhã
Agora que sabia olhar os homens com força 
  e ver nas sombras que até aí não via a promessa  risonha da manhã
Mas quem se vai interessar amigos quem por quem só tem o sonho da manhã?
E uma vez de noite ao fim da  noite mesmo ao cabo da noite
  meu companheiro ficou deitado para sempre 
  e com a boca cerrada para sempre 
  e com os olhos fechados para sempre
  e com as mãos cruzadas para sempre 
  imóvel e calado para sempre
E era quase manhã E era quase manhã
Oh mulher das mãos gretadas
Como era brando o ar que te fechava os  olhos e soprava 
  o teu cabelo e o teu vestido
  Como o teu coração batia espavorido aos  passos dele 
  ao fim da rua
  E como os dedos  dele eram ingénuos e tremiam 
  também
  nesse ontem  esfiapado na distância
E a casa e a  casa e casar e a casa
  como uma asa
  levíssima  roçando
  a doce pele dos  quinze anos
Mas agora
  ele adormece à  mesa tão cansado
  todas as noites  tão cansado e infeliz
  e tu estás  sempre séria com os ombros caídos
  e tens as mãos  gretadas
Mário Dionísio
André Spencer e F. Pedro Oliveira para Casa da Achada - Centro Mário Dionísio | 2009-2022